Mulheres em campo
Formada em Relações Internacionais pela PUC-SP, Júlia Vergueiro trabalhou por mais de três anos em um grande banco privado, onde era responsável por projetos de sustentabilidade, chegando a representar o banco em uma conferência na ONU. Depois de conhecer o Pelado Real Futebol Clube, um lugar exclusivo para jogos de futebol feminino, pediu demissão do trabalho e vestiu a camisa do projeto. Hoje, 230 mulheres e meninas jogam bola nos seus três espaços em São Paulo. Ela também escreve para a espnW e faz palestras sobre o empoderamento feminino por meio do esporte.
Convidamos Júlia para um bate-bola sobre a Copa do Mundo de Futebol Feminino da FIFA - patrocinada pela Visa - que começa em junho, na França.
Qual a importância da Copa do Mundo da FIFA para o futebol feminino?
A Copa é o principal evento de futebol para as equipes masculina e feminina. É o objetivo de todo futebolista. As atletas se preparam durante quatro anos para disputar o campeonato, pois é o momento de maior visibilidade para mostrar seu potencial para o mundo todo. É uma oportunidade para comprovar que o nível do futebol feminino está altíssimo e atrativo aos olhos do torcedor, não é à toa que quase todos os ingressos estão esgotados. Pela primeira vez, as premiações para as jogadoras serão iguais às dos jogadores, o que é uma oportunidade para discutir a questão da desigualdade salarial entre homens e mulheres que permeia todas as esferas, inclusive o futebol.
As mulheres enfrentam preconceito no futebol?
Posso dizer por mim. Meus pais são apaixonados por esportes, mas estranharam quando deixei uma carreira promissora no banco para ser empreendedora do futebol feminino. Por dois anos não tive salário porque precisava reinvestir na empresa. Foi um período bem desafiador. Hoje tenho orgulho da minha decisão. A Marta, por exemplo, é a maior artilheira da seleção brasileira de todas as Copas, incluindo a masculina e a feminina, com mais de cem gols, superando até o Pelé, que marcou 95. Ela ganhou a Bola de Ouro da Fifa seis vezes, enquanto Messi e Cristiano Ronaldo receberam o prêmio cinco vezes, cada um. Muitas pessoas argumentam que ela ainda não ganhou uma Copa do Mundo - mas Messi e Cristiano Ronaldo também não. Enquanto a Marta tem rendimentos de R$ 1,45 milhão por ano, os ganhos do Messi chegam a R$ 563 milhões, de acordo com a revista France Football de abril. Portanto, a visibilidade e a igualdade ainda não são as mesmas.
Por que o futebol feminino não está em pé de igualdade com o masculino?
Em muitos países, a mulher foi proibida de praticar alguns esportes com a alegação de ser incompatível com a sua natureza física. No Brasil, o futebol feminino foi proibido por lei em 1941 e a polícia podia até prender a mulher que jogasse futebol. A Léa Campos foi presa diversas vezes por jogar. Para burlar essa regra, ela se tornou a primeira árbitra reconhecida pela FIFA. Essa proibição acabou em 1979 e os clubes puderam formar seus times femininos apenas em 1983. Durante quase 40 anos de proibição, a seleção masculina brasileira foi tricampeã da Copa do Mundo. Para se ter uma ideia, a primeira Copa do Mundo masculina foi em 1930, enquanto a feminina só ocorreu em 1991.
Desde então, como tem sido o desenvolvimento do futebol feminino?
Tem crescido no mundo todo. Muitas seleções desconhecidas na última Copa, como a da Inglaterra e a da França, são grandes favoritas a ganharem o título porque receberam incentivo das suas federações, além de participar de um torneio competitivo como a Liga dos Campeões da UEFA. Vários clubes ingleses como Manchester City, Arsenal e Chelsea contam com times femininos que levam grandes públicos aos estádios. Além disso, todas as campanhas de marketing são feitas com jogadores e jogadoras. Essa mudança fomenta a cultura do futebol e muitas meninas se interessam por jogar - e a idade tem impacto no rendimento do esporte profissional. Como resultado, há um maior número de boas jogadoras para compor uma seleção de qualidade.
E como tem sido o desenvolvimento no Brasil?
Nossa trajetória tem sido mais lenta e recente. O primeiro campeonato nacional foi realizado em 2013. A partir deste ano, os 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro precisam ter um time de futebol feminino de adulto e de base. Além disso, os clubes masculinos classificados para as Copas Libertadores da América e Sul-Americana também devem ter uma equipe feminina, adulta e de base, por parceria ou iniciativa própria. Isso certamente irá fortalecer a modalidade, com a descoberta de novos talentos, aumento de vagas para as atletas e a transmissão dos campeonatos pela televisão. Acredito que teremos uma seleção mais competitiva daqui a duas Copas porque o esporte precisa de incentivos desde seu início, assim como a educação.
Qual a importância das grandes empresas em apoiar eventos esportivos?
As empresas têm um poder de voz gigantesco, com um alcance enorme e, infelizmente, a voz da mulher ainda é pouco escutada. É bom saber que a Visa dá o mesmo patrocínio à Copa do Mundo de Futebol Masculino e Feminino há muitos anos, além de criar promoções para os consumidores e possibilitar que seus colaboradores assistam aos jogos da seleção feminina durante o torneio. É um ótimo exemplo que incentiva outras empresas a fazerem o mesmo. Pela primeira vez, os jogos da seleção brasileira feminina no Mundial serão transmitidos na televisão aberta. A Visa também foi a primeira marca a investir na Liga dos Campeões após a UEFA separar os patrocínios para o futebol masculino e feminino. É preciso dar o primeiro passo, sem criar desculpas como: as pessoas não gostam de assistir aos jogos ou a seleção feminina precisa ganhar uma Copa para se tornar popular.
Como o futebol pode ser um instrumento para o empoderamento feminino?
A mulher enfrenta inúmeras barreiras para conquistar seu espaço em nichos dominados pelo homem há muito tempo, como no mercado financeiro e no esporte. Se o homem tem um lugar para jogar futebol amador, a pelada, e encontrar seus amigos, por que a mulher não pode também? Foi assim que surgiu o Pelado Real Futebol Clube. Como o homem joga pelada, uma palavra que está no feminino, a ideia era fazer uma brincadeira para diferenciar, surgindo, assim, o nome do nosso espaço, Pelado.
Você tem histórias de transformação das jogadoras do Pelado?
Temos muitos exemplos marcantes que mostram as mudanças trazidas pelo futebol. Uma peladeira foi demitida e também perdeu suas amigas, já que elas faziam parte do seu ambiente de trabalho. Ela se sentia sozinha, não saía de casa e entrou em depressão. Seu marido tentava ajudá-la, mas não sabia o que fazer. Quando ela começou a jogar futebol, encontrou motivação e um novo círculo de amizades. Para a mulher, os ambientes se restringem ao trabalho e à família/casa, sem válvulas de escape para o lazer. Ela melhorou e hoje está ótima, trabalhando e morando em Nova York. Também conheço histórias de meninas que sofreram bullying na escola porque o futebol ainda é considerado um esporte masculino. Quando elas conheceram um lugar com outras meninas que gostavam de jogar bola, elas se identificaram, criando um sentimento de pertencimento. Elas se fortalecem para enfrentar todo tipo de preconceito. Acredito que esse é o sentido da palavra empoderada. Eu tenho esse poder e posso dizer que gosto de jogar futebol com as minhas amigas e já fui campeã. Elas têm isso como uma conquista e não como um problema, o que é transformador para suas vidas e para o futuro da sociedade.
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